25 janeiro 2010

É hoje um facto aceite que o mundo mudou dramaticamente depois de Darwin. A mudança foi, e continua a ser, tão brusca e fundamental, que nos parece ter acabado no século XIX um mundo - um mundo estático e sempre igual a si mesmo -, e começando outro, um mundo em permanente evolução e mudança. Ainda hoje estamos a tentar entender o alcance da revolução darwiniana e o seu impacto em todos os dominios da cultura humana: na ciência como na filosofia, na ética e na estética como na religião.

O centro de estudos Filosóficos e Humanísticos da Faculdade de Filosofia da Universidade Católica de Portuguesa organizou de 10 a 12 de Setembro um Congresso Internacional intitulado Darwin´s impact on science, society and culture. A 21st century reassessment. Pretendeu-se celebrar com este congresso os 200 anos do nascimento de Charles Darwin e os 150 anos da sua obra fundamental, "A origem das espécies". Por ocasião do Congresso organizou-se uma exposição sobre a mesma temática. Os textos foram escritos por dois docentes universitários e um investigador que estão disponíveis para responder a questões que lhes forem colocadas a respeito do tema e conteúdo desta exposição: Doutor Alfredo Dinis, docente da Universidade Católica Portuguesa; Doutor Ivo Chelo, investigador do Instituto Gulbenkian de Ciência e Doutor Miguel Panão, docente do Instituto Superior Tecnico.

De 10 a 24 de Fevereiro de 2010 esta exposição será exibida na nossa escola, e contará, no dia 24, com a presença destas três personalidades, no sentido de partilharem a sua experiência e responderem às questões que lhes forem colocadas.
























Este é o poster de divulgação da Exposição e do Colóquio.

TEXTO 1

A teoria evolutiva de Darwin: uma alteração fundamental do pensamento humano

Traduzido e adaptado de “The theory of evolution: 150 years afterwards”
Sir Crispin Tickell

As mudanças de paradigmas científicos não são facilmente aceites. Em parte isto acontece porque a maior parte dos estudiosos vê mais facilmente os detalhes dos problemas do que a forma como estes podem ser úteis para explicar o funcionamento de todo um sistema. A publicação da “Origem das espécies” em 24 de Novembro de 1859 por Charles Darwin (1809-1882) marcou uma mudança fundamental do pensamento humano, uma das mais significativas na história intelectual da espécie humana.
Até ao séc. XVIII, poucos tinham desafiado a descrição temporal da história da Terra tal como era apresentada no livro do Génesis. Gradualmente isto veio a acontecer, não tanto com Georges Cuvier (1769-1832) e Jean Baptiste Lamarck (1744-1829), mas principalmente com James Hutton (1726-1797) e Charles Lyell (1797-1875) que reconheceram que o desenvolvimento da Terra tinha ocorrido durante um período muito longo no qual era difícil identificar “algum vestígio de um princípio” ou “um sinal do fim”. Ainda assim a resistência permanecia forte. Tal como Thomas Henry Huxley (1825-1895) um dia afirmara: “o caminho para a especulação geológica parecia bloqueado por um sinal onde se lia Entrada proibida… Assinado: Moisés”.
Darwin herdara o pensamento da sua sociedade, e isto é evidente no trabalho que levou à publicação do livro “A viagem do Beagle”. Foi influenciado pelas ideias de outros cientistas, incluindo Erasmus Darwin (1731-1802) seu avô. No entanto, a publicação da sua teoria evolutiva demarcava-se das restantes, quer pelo seu carácter abrangente, quer pela quantidade de dados e exemplos que a suportavam.
De um ponto de vista actual, é impressionante como Darwin, e Alfred Russell Wallace (1823-1913), em muitos aspectos, estavam tão certos. Isto vê-se na própria teoria da selecção natural, na enorme diversidade de espécies apesar de uma ascendência comum, no reconhecimento da extinção selectiva de algumas espécies em várias circunstâncias, na necessidade de longos períodos de tempo nos quais a evolução “trabalhava”, na dispersão e localização de espécies em diferentes continentes, na importância da selecção sexual para a diferenciação dos géneros, co-evolução de espécies e nos processos biológicos hoje em dia estudados pela ecologia e, finalmente, na evolução gradual dos organismos a par do carácter gradual das mudanças geológicas ao longo do tempo. Neste contexto, o papel de um Deus intervencionista e caprichoso que criava espécies de vez em quando e que as conservava vivas, parecia ser desnecessário.

TEXTO 2

Desafios da teoria da evolução ao cristianismo
Excerto do artigo por Alfredo Dinis, Brotéria 169 (2009) 529-550

As implicações da teoria da evolução das espécies para o cristianismo têm sido objecto de atenção por parte de um número crescente de teólogos, cientistas e filósofos, bem como de declarações de Papas como João Paulo II e Bento XVI. Apesar disso, tem-se a sensação de que não foram ainda adequadamente enfrentados os desafios que esta teoria coloca ao cristianismo, desde a publicação por Charles Darwin, há 150 anos, da sua obra principal A Origem das Espécies. Se é verdade que a filosofia e a teologia cristãs têm procurado uma nova compreensão do ser humano na sua dupla vertente, física e espiritual, que não assente de modo simplista nos dualismos substancialistas do passado, tem-se por vezes a sensação de que actualmente há também retrocessos nesta compreensão. A relação de realidades como a alma e o espírito, que parecem pertencer a um mundo não evolutivo, com a matéria em evolução, e com o corpo humano em particular, parece constituir uma questão central que tem sido até agora de difícil solução. Esta dificuldade insere-se, porém, no contexto muito mais vasto de uma crise cultural generalizada, de uma profunda mudança paradigmática, que torna difícil compreender de que forma o cristianismo se harmoniza com o evolucionismo. Trata-se de uma crise de crescimento da Humanidade tanto na sua compreensão do universo e da vida em geral, como na sua auto-compreensão. Esta crise atinge, de uma forma por muitos subestimada, formulações teológicas até hoje consideradas fundamentais. É pois num contexto de crise que deve ser repensada a relação entre evolucionismo e cristianismo.

A questão do evolucionismo no contexto de uma crise cultural generalizada

A teoria da evolução das espécies introduz no paradigma filosófico-teológico tradicional, de inspiração aristotélico-tomista, e até mesmo no paradigma científico ocidental predominante até ao século XIX, uma ruptura que nos traz imediatamente à memória uma outra semelhante causada no século XVII pela teoria heliocêntrica. O desmoronar do universo medieval, no qual todos os elementos da Revelação cristã pareciam encaixar perfeitamente como num puzzle onde também os elementos da filosofia e da ciência tinham o seu lugar, levou àquilo a que podemos chamar ‘fim de um mundo’. Muitos elementos fundamentais da filosofia aristotélica e da teologia tomista tiveram que ser profundamente revistos e muitos deles completamente abandonados. A descoberta de uma infinidade de estrelas por detrás da ‘esfera das estrelas fixas’, onde durante séculos se pensara que estava localizado o empíreo, habitação de Deus, dos anjos e dos santos, por exemplo, obrigou a teologia cristã a elaborar uma nova teologia da natureza e da criação. Algo de semelhante se passa hoje com a teoria da evolução das espécies no que se refere ao aparecimento e à evolução da vida na Terra. A teoria não se pronuncia sobre a origem da vida, mas era inevitável que esta questão surgisse logo que o evolucionismo começou a pôr em causa a interpretação literal dos três primeiros capítulos do Génesis. As consequências teológicas e filosóficas da teoria não se fizeram por isso esperar, conduzindo a alguns dos aspectos da crise cultural que ainda hoje perduram.
Teilhard de Chardin foi certamente um dos primeiros autores cristãos a aceitar não apenas a inevitabilidade do evolucionismo biológico, mas também a necessidade da elaboração de uma perspectiva evolutiva do universo que inclui o darwinismo mas o supera significativamente numa nova síntese de toda a realidade, síntese que nos revela Deus, o cosmos, a vida de uma forma radicalmente nova e, para Teilhard e muitos dos que o seguem, entusiasmante.
Muito cedo, no início do século XX, Teilhard reconheceu esta crise que punha seriamente em causa alguns dos fundamentos da aparentemente inabalável formulação tradicional da fé cristã. A passagem de uma perspectiva estática do universo, da vida e do próprio Deus, a uma perspectiva dinâmica, bem se pode comparar a um furacão que à sua passagem deixa apenas de pé os edifícios e as árvores, mais fortes e com mais seguros fundamentos e raízes. Mas Teilhard tem uma visão positiva da crise: “Na crise presente em que se defrontam, sob o nosso olhar e nos nossos corações, as forças cristãs tradicionais e as forças modernas da Evolução, não será conveniente reconhecer simplesmente as peripécias de uma providencial e necessária fecundação? Julgo que sim” .
Algumas décadas depois, após os debates que tiveram lugar durante o Concílio Vaticano II, Joseph Ratzinger reconhecia os sérios problemas que, num mundo em mudança, os teólogos experimentavam ao pretenderem expor a fé aos seus contemporâneos. Depois de se referir a uma história contada por Harvey Cox, na qual o teólogo era comparado a um palhaço fracassado, Ratzinger afirma:

“É preciso reconhecer que quem tenta anunciar a fé no meio de pessoas envolvidas na vida e no pensamento de hoje pode sentir-se realmente como um palhaço, ou antes como alguém que se levantou de um sarcófago antigo e se apresenta ao mundo de hoje com os trajes e pensamento de antigamente, sendo incapaz de compreender este mundo e de ser compreendido por ele. Mas se aquele que tenta anunciar a fé assumir uma atitude autocrítica, depressa notará que não se trata apenas da forma ou de uma crise de roupagem com que a teologia se apresenta. Quem, na estranheza do empreendimento teológico dirigido aos seres humanos do nosso tempo, levar a sério a sua missão, experimentará e reconhecerá não apenas a dificuldade de se fazer entender, mas também a insegurança da sua própria fé e o poder aflitivo da incredulidade presente dentro da sua própria vontade de crer.”

Este texto, inicialmente publicado em 1967, poderia ter sido escrito nos nossos dias. A dificuldade que a teologia cristã tem em apresentar hoje a fé aos seres humanos do nosso tempo, não é certamente menor que a dos anos sessenta do século passado. O confronto com o paradigma evolucionista, ainda não suficientemente realizado de uma forma integradora, é certamente um dos factores que nos nossos dias bloqueia o acesso de muitos à fé. A análise desta situação torna-se, por conseguinte, cada vez mais premente.
Também num texto publicado em 1970, Ratzinger reconhecia, de uma forma não menos dramática, a realidade das mudanças profundas que estavam a acontecer desde o final da segunda guerra mundial:

“Vivemos hoje sob a impressão de uma prodigiosa viragem, em comparação com a qual a passagem da Idade Média para a Modernidade nos parece inofensiva; e até a ruptura das invasões bárbaras, que se situa entre a Antiguidade e a Idade Média, chega porventura a parecer que dificilmente terá a importância decisiva inerente à viragem de hoje, a qual, em todo o caso, produz um efeito apenas comparável ao das grandes viragens no desenvolvimento da humanidade.”

Qual é então, segundo o autor, a experiência de crise vivida hoje pelos crentes?

“Difundiu-se entre os crentes um sentimento semelhante ao que poderia dominar entre os passageiros de um barco prestes a afundar-se: interrogam-se sobre se a fé cristã ainda tem um futuro ou se, de facto, não terá sido simplesmente ultrapassada de forma cada vez mais ostensiva pelo progresso intelectual. Na base destas considerações está a consciência de um profundo abismo entre o mundo da fé e o do saber, abismo esse que parece intransponível e que torna a fé ainda mais indiscernível.”

Num outro texto publicado em 1973, o autor reconhece que a teoria da evolução das espécies provocou uma revolução maior que a de Galileu, uma vez que esta apenas tocou as dimensões espaciais do universo, aumentando-as muito, ao passo que a revolução darwiniana tocou a dimensão temporal, colocando toda a realidade em evolução. “O ser humano como um ser em permanente transformação. As grandes constantes da visão bíblica do mundo, o alfa e o ómega, o princípio e o fim, desembocam no indeterminável - os fundamentos da realidade modificam-se: evoluir toma o lugar do ser, evolução toma o lugar da criação, progresso toma o lugar da queda.” A aceitação do evolucionismo como explicação da vida representa, pois, uma autêntica revolução paradigmática no sentido kuhniano do termo:

“Quando se tenta conciliar o pensamento criacionista com a teoria da evolução, propõe-se efectivamente à fé uma imagem do mundo muito diferente daquela com que sempre se identificou. É neste fenómeno que efectivamente está o cerne de toda a questão à volta da qual giram as nossas reflexões. O crente fica sem a imagem do mundo com a qual ele mesmo se identifica, tendo de identificar-se com uma outra. Pode acontecer isso sem que o crente perca a sua identidade? Este é efectivamente o nosso problema”

Uma das questões mais perturbantes para o crente em geral tem a ver com a sua inserção no movimento evolutivo que partindo de seres unicelulares conduziu à extraordinária diversidade de seres vivos, entre os quais se encontra o ser humano. A história da criação de Adão do pó da terra, de Eva a partir de uma costela de Adão, do pecado original como fonte do sofrimento e da morte, etc., são apenas alguns dos elementos que, baseados numa interpretação literal do Livro do Génesis, parecem estar em frontal desacordo com a nova perspectiva evolutiva da espécie humana e da vida em geral. Como compreender então o ser humano profundamente inserido no processo evolutivo e, apesar disso, criado por Deus?
(…)

Os contínuos desafios do evolucionismo ao cristianismo

Quais são então os desafios que o evolucionismo continua a lançar ao cristianismo ou, mais concretamente, ao ser humano cristão? Ratzinger resume bem este desafio nos seguintes termos: “A teoria da evolução não acaba com a fé; também não a confirma. Mas lança o desafio a uma maior compreensão de si mesmo, e ajuda o ser humano a ser cada vez mais o que é na realidade: a criatura que, para toda a eternidade, pode dizer tu a Deus.”
Segundo o teólogo norte-americano John Haught, o evolucionismo teve já algumas consequências para a teologia cristã:

“Em primeiro lugar, a evolução obrigou alguns pensadores religiosos a alargar aquilo que é designado por teologia natural. E, em segundo lugar, fez com que a teologia fundamental tivesse de dar mais atenção àquilo a que poderíamos chamar ‘promessa’ da Natureza… O pensamento de Darwin, no entanto, convida também a teologia natural a considerar o facto de que vivemos num universo inacabado… Uma criação inacabada convida a teologia a estender a nossa esperança não apenas para um céu destinado aos seres humanos num futuro que há-de vir, mas para um destino antes disso que, de algum modo, terá que incluir todo o universo.”

Apesar desta visão algo optimista, Haught afirma que “ teologia católica hoje, como a teologia cristã em geral, ainda não foi tocada profundamente pelas ideias evolucionistas… A reflexão teológica sobre a Natureza ainda é algo de marginal na teologia católica, e está quase totalmente ausente dos Seminários.”

A conveniência de uma resposta mais adequada aos desafios do evolucionismo por parte dos cristãos em geral, e dos teólogos em particular, tem também a ver com a necessidade de evitar que a situação da Igreja Católica e da teologia se assemelhe hoje à que foi descrita há mais de quarenta anos por Joseph Ratzinger na sua Introdução ao Cristianismo, e que foi atrás mencionada. A ausência de uma maior clarificação destes desafios poderá tornar não só a fé cristã como também os próprios teólogos cada vez mais incompreensíveis para a cultura de hoje, por um lado, mas também, por outro lado, alimentar posições criacionistas que representam hoje uma caricatura do que uma fé esclarecida deve afirmar tomando a sério o paradigma evolucionista.



TEXTO 3

CARTA DA TRANSDISCIPLINARIDADE
(Elaborada no Primeiro Congresso Mundial da Transdisciplinaridade, Convento de Arrábida, Portugal, 2-6 Novembro 1994)

Preâmbulo

Considerando que a proliferação actual das disciplinas académicas conduz a um crescimento exponencial do saber que torna impossível qualquer olhar global do ser humano;

Considerando que somente uma inteligência que se dá conta da dimensão planetária dos conflitos actuais poderá fazer frente à complexidade do nosso mundo e ao desafio contemporâneo de autodestruição material e espiritual da nossa espécie;

Considerando que a vida está fortemente ameaçada por uma tecnociência triunfante que obedece apenas à lógica assustadora da eficácia pela eficácia;

Considerando que a ruptura contemporânea entre um saber cada vez mais acumulativo e um ser interior cada vez mais empobrecido leva à ascensão de um novo obscurantismo, cujas consequências sobre o plano individual e social são incalculáveis;

Considerando que o crescimento do saber, sem precedentes na história, aumenta a desigualdade entre os seus detentores e os que são desprovidos dele, engendrando assim desigualdades crescentes no seio dos povos e entre as nações do planeta;

Considerando simultaneamente que todos os desafios enunciados possuem a sua contrapartida de esperança e que o crescimento extraordinário do saber pode conduzir a uma mutação comparável à evolução dos hominídeos à espécie humana;

Considerando o que precede, os participantes do Primeiro Congresso Mundial de Transdisciplinaridade (Convento de Arrábida, Portugal 2 - 7 de novembro de 1994) adoptaram o presente Protocolo entendido como um conjunto de princípios fundamentais da comunidade de espíritos transdisciplinares, constituindo um contrato moral que todo signatário deste Protocolo faz consigo mesmo, sem qualquer pressão jurídica e institucional.

Artigo 1:
Qualquer tentativa de reduzir o ser humano a uma mera definição e de dissolvê-lo nas estruturas formais, sejam elas quais forem, é incompatível com a visão transdisciplinar.

Artigo 2:
O reconhecimento da existência de diferentes níveis de realidade, regidos por lógicas diferentes é inerente à atitude transdisciplinar. Qualquer tentativa de reduzir a realidade a um único nível regido por uma única lógica não se situa no campo da transdisciplinaridade.

Artigo 3:
A transdisciplinaridade é complementar à aproximação disciplinar: faz emergir da confrontação das disciplinas dados novos que as articulam entre si; oferece-nos uma nova visão da natureza e da realidade. A transdisciplinaridade não procura o domínio sobre as várias outras disciplinas, mas a abertura de todas elas àquilo que as atravessa e as ultrapassa.

Artigo 4:
O ponto de sustentação da transdisciplinaridade reside na unificação semântica e operativa das acepções através e além das disciplinas. Ela pressupõe uma racionalidade aberta, mediante um novo olhar sobre a relatividade das noções de “definição” e de “objectividade”. O formalismo excessivo, a rigidez das definições e o absolutismo da objetividade, comportando a exclusão do sujeito, levam ao empobrecimento.

Artigo 5:
A visão transdisciplinar é resolutamente aberta na medida em que ela ultrapassa o campo das ciências exactas devido ao seu diálogo e reconciliação não somente com as ciências humanas, mas também com a arte, a literatura, a poesia e a experiência espiritual.

Artigo 6:
Em relação à interdisciplinaridade e à multidisciplinaridade, a transdisciplinaridade é multirreferencial e multidimensional. Embora levando em conta os conceitos de tempo e de história, a transdisciplinaridade não exclui a existência de um horizonte transhistórico.

Artigo 7:
A transdisciplinaridade não constitui nem uma nova religião, nem uma nova filosofia, nem uma nova metafísica, nem uma ciência das ciências.

Artigo 8:
A dignidade do ser humano é também de ordem cósmica e planetária. O surgimento do ser humano sobre a Terra é uma das etapas da história do Universo. O reconhecimento da Terra como pátria é um dos imperativos da transdisciplinaridade. Todo ser humano tem direito a uma nacionalidade, mas, a título de habitante da Terra, ele é ao mesmo tempo um ser transnacional. O reconhecimento pelo direito internacional de uma dupla cidadania – referente a uma nação e à Terra - constitui um dos objetivos da pesquisa transdisciplinar.

Artigo 9:
A transdisciplinaridade conduz a uma atitude aberta em relação aos mitos, às religiões e àqueles que os respeitam num espírito transdisciplinar.

Artigo 10:
Não existe um lugar cultural privilegiado de onde se possam julgar as outras culturas. A abordagem transdisciplinar é ela própria transcultural.

Artigo 11:
Uma educação autêntica não pode privilegiar a abstração no conhecimento. Deve ensinar a contextualizar, concretizar e globalizar. A educação transdisciplinar reavalia o papel da intuição, da imaginação, da sensibilidade e do corpo na transmissão dos conhecimentos.

Artigo 12:
A elaboração de uma economia transdisciplinar baseada no postulado de que a economia deve estar a serviço do ser humano e não o inverso.

Artigo 13:
A ética transdisciplinar recusa toda atitude que se negue ao diálogo e à discussão, seja qual for a sua origem - de ordem ideológica, científica, religiosa, económica, política ou filosófica. O saber compartilhado deveria conduzir a uma compreensão compartilhada, baseada no respeito absoluto das diferenças entre os seres, unidos pela vida comum sobre uma única e mesma Terra.

Artigo 14:
Rigor, abertura e tolerância são características fundamentais da atitude e da visão transdisciplinar. O rigor na argumentação, que leva em conta todos os dados, é a melhor barreira contra possíveis desvios. A abertura comporta a aceitação do desconhecido, do inesperado e do imprevisível. A tolerância é o reconhecimento do direito às idéias e verdades contrárias às nossas.

Artigo final:
A presente Carta Transdisciplinar foi adoptada pelos participantes do Primeiro Congresso Mundial de Transdisciplinaridade, que não reivindicam nenhuma outra autoridade excepto a do seu próprio trabalho e da sua própria actividade.
Segundo os procedimentos que serão definidos de acordo com as mentes transdisciplinares de todos os países, esta Carta esta aberta à assinatura de qualquer ser humano interessado em promover nacional, internacional e transnacionalmente as medidas progressivas para a aplicação destes artigos na vida cotidiana.


Convento de Arrábida, 6 de novembro de 1994
Comitê de Redação
Lima de Freitas, Edgar Morin e Basarab Nicolescu