Desafios da teoria da evolução ao cristianismo
Excerto do artigo por Alfredo Dinis, Brotéria 169 (2009) 529-550
As implicações da teoria da evolução das espécies para o cristianismo têm sido objecto de atenção por parte de um número crescente de teólogos, cientistas e filósofos, bem como de declarações de Papas como João Paulo II e Bento XVI. Apesar disso, tem-se a sensação de que não foram ainda adequadamente enfrentados os desafios que esta teoria coloca ao cristianismo, desde a publicação por Charles Darwin, há 150 anos, da sua obra principal A Origem das Espécies. Se é verdade que a filosofia e a teologia cristãs têm procurado uma nova compreensão do ser humano na sua dupla vertente, física e espiritual, que não assente de modo simplista nos dualismos substancialistas do passado, tem-se por vezes a sensação de que actualmente há também retrocessos nesta compreensão. A relação de realidades como a alma e o espírito, que parecem pertencer a um mundo não evolutivo, com a matéria em evolução, e com o corpo humano em particular, parece constituir uma questão central que tem sido até agora de difícil solução. Esta dificuldade insere-se, porém, no contexto muito mais vasto de uma crise cultural generalizada, de uma profunda mudança paradigmática, que torna difícil compreender de que forma o cristianismo se harmoniza com o evolucionismo. Trata-se de uma crise de crescimento da Humanidade tanto na sua compreensão do universo e da vida em geral, como na sua auto-compreensão. Esta crise atinge, de uma forma por muitos subestimada, formulações teológicas até hoje consideradas fundamentais. É pois num contexto de crise que deve ser repensada a relação entre evolucionismo e cristianismo.
A questão do evolucionismo no contexto de uma crise cultural generalizada
A teoria da evolução das espécies introduz no paradigma filosófico-teológico tradicional, de inspiração aristotélico-tomista, e até mesmo no paradigma científico ocidental predominante até ao século XIX, uma ruptura que nos traz imediatamente à memória uma outra semelhante causada no século XVII pela teoria heliocêntrica. O desmoronar do universo medieval, no qual todos os elementos da Revelação cristã pareciam encaixar perfeitamente como num puzzle onde também os elementos da filosofia e da ciência tinham o seu lugar, levou àquilo a que podemos chamar ‘fim de um mundo’. Muitos elementos fundamentais da filosofia aristotélica e da teologia tomista tiveram que ser profundamente revistos e muitos deles completamente abandonados. A descoberta de uma infinidade de estrelas por detrás da ‘esfera das estrelas fixas’, onde durante séculos se pensara que estava localizado o empíreo, habitação de Deus, dos anjos e dos santos, por exemplo, obrigou a teologia cristã a elaborar uma nova teologia da natureza e da criação. Algo de semelhante se passa hoje com a teoria da evolução das espécies no que se refere ao aparecimento e à evolução da vida na Terra. A teoria não se pronuncia sobre a origem da vida, mas era inevitável que esta questão surgisse logo que o evolucionismo começou a pôr em causa a interpretação literal dos três primeiros capítulos do Génesis. As consequências teológicas e filosóficas da teoria não se fizeram por isso esperar, conduzindo a alguns dos aspectos da crise cultural que ainda hoje perduram.
Teilhard de Chardin foi certamente um dos primeiros autores cristãos a aceitar não apenas a inevitabilidade do evolucionismo biológico, mas também a necessidade da elaboração de uma perspectiva evolutiva do universo que inclui o darwinismo mas o supera significativamente numa nova síntese de toda a realidade, síntese que nos revela Deus, o cosmos, a vida de uma forma radicalmente nova e, para Teilhard e muitos dos que o seguem, entusiasmante.
Muito cedo, no início do século XX, Teilhard reconheceu esta crise que punha seriamente em causa alguns dos fundamentos da aparentemente inabalável formulação tradicional da fé cristã. A passagem de uma perspectiva estática do universo, da vida e do próprio Deus, a uma perspectiva dinâmica, bem se pode comparar a um furacão que à sua passagem deixa apenas de pé os edifícios e as árvores, mais fortes e com mais seguros fundamentos e raízes. Mas Teilhard tem uma visão positiva da crise: “Na crise presente em que se defrontam, sob o nosso olhar e nos nossos corações, as forças cristãs tradicionais e as forças modernas da Evolução, não será conveniente reconhecer simplesmente as peripécias de uma providencial e necessária fecundação? Julgo que sim” .
Algumas décadas depois, após os debates que tiveram lugar durante o Concílio Vaticano II, Joseph Ratzinger reconhecia os sérios problemas que, num mundo em mudança, os teólogos experimentavam ao pretenderem expor a fé aos seus contemporâneos. Depois de se referir a uma história contada por Harvey Cox, na qual o teólogo era comparado a um palhaço fracassado, Ratzinger afirma:
“É preciso reconhecer que quem tenta anunciar a fé no meio de pessoas envolvidas na vida e no pensamento de hoje pode sentir-se realmente como um palhaço, ou antes como alguém que se levantou de um sarcófago antigo e se apresenta ao mundo de hoje com os trajes e pensamento de antigamente, sendo incapaz de compreender este mundo e de ser compreendido por ele. Mas se aquele que tenta anunciar a fé assumir uma atitude autocrítica, depressa notará que não se trata apenas da forma ou de uma crise de roupagem com que a teologia se apresenta. Quem, na estranheza do empreendimento teológico dirigido aos seres humanos do nosso tempo, levar a sério a sua missão, experimentará e reconhecerá não apenas a dificuldade de se fazer entender, mas também a insegurança da sua própria fé e o poder aflitivo da incredulidade presente dentro da sua própria vontade de crer.”
Este texto, inicialmente publicado em 1967, poderia ter sido escrito nos nossos dias. A dificuldade que a teologia cristã tem em apresentar hoje a fé aos seres humanos do nosso tempo, não é certamente menor que a dos anos sessenta do século passado. O confronto com o paradigma evolucionista, ainda não suficientemente realizado de uma forma integradora, é certamente um dos factores que nos nossos dias bloqueia o acesso de muitos à fé. A análise desta situação torna-se, por conseguinte, cada vez mais premente.
Também num texto publicado em 1970, Ratzinger reconhecia, de uma forma não menos dramática, a realidade das mudanças profundas que estavam a acontecer desde o final da segunda guerra mundial:
“Vivemos hoje sob a impressão de uma prodigiosa viragem, em comparação com a qual a passagem da Idade Média para a Modernidade nos parece inofensiva; e até a ruptura das invasões bárbaras, que se situa entre a Antiguidade e a Idade Média, chega porventura a parecer que dificilmente terá a importância decisiva inerente à viragem de hoje, a qual, em todo o caso, produz um efeito apenas comparável ao das grandes viragens no desenvolvimento da humanidade.”
Qual é então, segundo o autor, a experiência de crise vivida hoje pelos crentes?
“Difundiu-se entre os crentes um sentimento semelhante ao que poderia dominar entre os passageiros de um barco prestes a afundar-se: interrogam-se sobre se a fé cristã ainda tem um futuro ou se, de facto, não terá sido simplesmente ultrapassada de forma cada vez mais ostensiva pelo progresso intelectual. Na base destas considerações está a consciência de um profundo abismo entre o mundo da fé e o do saber, abismo esse que parece intransponível e que torna a fé ainda mais indiscernível.”
Num outro texto publicado em 1973, o autor reconhece que a teoria da evolução das espécies provocou uma revolução maior que a de Galileu, uma vez que esta apenas tocou as dimensões espaciais do universo, aumentando-as muito, ao passo que a revolução darwiniana tocou a dimensão temporal, colocando toda a realidade em evolução. “O ser humano como um ser em permanente transformação. As grandes constantes da visão bíblica do mundo, o alfa e o ómega, o princípio e o fim, desembocam no indeterminável - os fundamentos da realidade modificam-se: evoluir toma o lugar do ser, evolução toma o lugar da criação, progresso toma o lugar da queda.” A aceitação do evolucionismo como explicação da vida representa, pois, uma autêntica revolução paradigmática no sentido kuhniano do termo:
“Quando se tenta conciliar o pensamento criacionista com a teoria da evolução, propõe-se efectivamente à fé uma imagem do mundo muito diferente daquela com que sempre se identificou. É neste fenómeno que efectivamente está o cerne de toda a questão à volta da qual giram as nossas reflexões. O crente fica sem a imagem do mundo com a qual ele mesmo se identifica, tendo de identificar-se com uma outra. Pode acontecer isso sem que o crente perca a sua identidade? Este é efectivamente o nosso problema”
Uma das questões mais perturbantes para o crente em geral tem a ver com a sua inserção no movimento evolutivo que partindo de seres unicelulares conduziu à extraordinária diversidade de seres vivos, entre os quais se encontra o ser humano. A história da criação de Adão do pó da terra, de Eva a partir de uma costela de Adão, do pecado original como fonte do sofrimento e da morte, etc., são apenas alguns dos elementos que, baseados numa interpretação literal do Livro do Génesis, parecem estar em frontal desacordo com a nova perspectiva evolutiva da espécie humana e da vida em geral. Como compreender então o ser humano profundamente inserido no processo evolutivo e, apesar disso, criado por Deus?
(…)
Os contínuos desafios do evolucionismo ao cristianismo
Quais são então os desafios que o evolucionismo continua a lançar ao cristianismo ou, mais concretamente, ao ser humano cristão? Ratzinger resume bem este desafio nos seguintes termos: “A teoria da evolução não acaba com a fé; também não a confirma. Mas lança o desafio a uma maior compreensão de si mesmo, e ajuda o ser humano a ser cada vez mais o que é na realidade: a criatura que, para toda a eternidade, pode dizer tu a Deus.”
Segundo o teólogo norte-americano John Haught, o evolucionismo teve já algumas consequências para a teologia cristã:
“Em primeiro lugar, a evolução obrigou alguns pensadores religiosos a alargar aquilo que é designado por teologia natural. E, em segundo lugar, fez com que a teologia fundamental tivesse de dar mais atenção àquilo a que poderíamos chamar ‘promessa’ da Natureza… O pensamento de Darwin, no entanto, convida também a teologia natural a considerar o facto de que vivemos num universo inacabado… Uma criação inacabada convida a teologia a estender a nossa esperança não apenas para um céu destinado aos seres humanos num futuro que há-de vir, mas para um destino antes disso que, de algum modo, terá que incluir todo o universo.”
Apesar desta visão algo optimista, Haught afirma que “ teologia católica hoje, como a teologia cristã em geral, ainda não foi tocada profundamente pelas ideias evolucionistas… A reflexão teológica sobre a Natureza ainda é algo de marginal na teologia católica, e está quase totalmente ausente dos Seminários.”
A conveniência de uma resposta mais adequada aos desafios do evolucionismo por parte dos cristãos em geral, e dos teólogos em particular, tem também a ver com a necessidade de evitar que a situação da Igreja Católica e da teologia se assemelhe hoje à que foi descrita há mais de quarenta anos por Joseph Ratzinger na sua Introdução ao Cristianismo, e que foi atrás mencionada. A ausência de uma maior clarificação destes desafios poderá tornar não só a fé cristã como também os próprios teólogos cada vez mais incompreensíveis para a cultura de hoje, por um lado, mas também, por outro lado, alimentar posições criacionistas que representam hoje uma caricatura do que uma fé esclarecida deve afirmar tomando a sério o paradigma evolucionista.